Por Jorge Rocha – Doutor em Ciências Médicas da USP/SP
Há muito tempo, quando era residente e frequentava o maior hospital de trauma da minha cidade, a realidade brutal dos olhos perfurados e lacerados chamava a atenção. Na maioria dos casos, a enucleação era o tratamento de escolha para os olhos que apresentavam, ao exame, ausência de percepção luminosa (SPL). Historicamente, o procedimento de enucleação era a regra; o racional científico se baseava na profilaxia da oftalmia simpática (OS) e da dor recorrente. No mundo, ocorrem cerca de 200 mil traumas oculares perfurantes ao ano, 381 casos por 100.000 habitantes nos Estados Unidos. A maioria destes olhos não tem a oportunidade de tratamentos que possibilitem a recuperação da visão. Vamos discutir a viabilidade do tratamento e da recuperação dos olhos SPL.1,2
A oftalmia simpática foi descrita inicialmente por William Mackenzie em 1840, com prevalência de 0,28% a 0,9% dos casos de traumas lacerantes e/ou perfurantes. A OS, uma uveíte granulomatosa não infecciosa grave, pode causar perda visual no olho contralateral. Preconizava-se a enucleação dos olhos vítimas de trauma perfurante/lacerante em até 14 dias após o acidente como forma da melhor prática profilática. Atualmente, dispomos de tratamentos locais e sistêmicos eficazes com novas drogas imunossupressoras que controlam a inflamação e impedem a perda visual. Além disso, devemos considerar que não temos dados científicos suficientes para afirmar que a cirurgia de enucleação realmente previne totalmente a OS. Além disso, não podemos esquecer as graves consequências psicológicas que a cirurgia mutilante pode causar aos pacientes e familiares. O terror da mutilação é grave.1,2
O tempo, remédio para todos os males, mas de especial importância para a evolução das ciências médicas oftalmológicas, possibilitou grande melhora nas técnicas de reparo do globo ocular e avanços na cirurgia vítreorretiniana moderna, fazendo ressuscitar olhos que, no passado recente, jaziam em procedimentos medievais de enucleação.
Estudo recentemente publicado por Sherif e colaboradores demonstrou que 17% dos globos com lesões perfurantes e SPL recuperaram alguma visão, desde a percepção de luz (PL) até 20/500. Na literatura, olhos com SPL que recuperam PL ou melhor variam de 4% a 17%. Casos anedóticos publicados relatam recuperação da visão de SPL para 20/50.2,3,4
Olhos SPL que são submetidos a vitrectomia no primeiro dia pós-trauma estão relacionados a uma maior chance de recuperação visual, enquanto idade, descolamento de retina, hemorragia vítrea, hemorragia de coroide, hifema e prolapso de tecido ocular, lesão do corpo ciliar não estão associados a um bom prognóstico visual. Estudos demonstram que olhos pós-trauma submetidos a vitrectomia pars plana recente (até 10 dias) têm melhor possibilidade de melhora visual em comparação com aqueles submetidos a vitrectomia pars plana tardia (10-14 dias).1,2,3,4
A grande pergunta neste momento é em relação à seleção dos olhos que têm bom prognóstico para recuperação visual. A busca intensa para identificar biomarcadores que nos permitam determinar o prognóstico visual desses olhos tem sido árdua. Olhos com visão inicial de SPL já têm prognóstico bastante reservado, mas, como demonstrado em publicações recentes, isso não exclui a possibilidade de melhora visual. Desorganização ocular interna, pelo exame de ultrassonografia ocular, foi demonstrada como um biomarcador de mau prognóstico, mas alguns olhos com desorganização interna do globo apresentam recuperação da visão após a cirurgia. Ainda carecemos de biomarcadores precisos.1,2,3
Olhos com grande perda de tecido ou destruição da sua estrutura interna com SPL possivelmente deveriam ser levados à enucleação, contudo, a perda estética, além da funcional, é devastadora. Não possuímos um guia detalhado sobre quais olhos devemos ou não tratar. Em caso de dúvida, votamos a favor do paciente. Devemos, sim, tentar o reparo primário de todos os olhos e encaminhá-los para avaliação de cirurgia de retina. Fazemos um bem ao paciente e à sociedade. A esperança é a última que morre! O avanço na cirurgia vítreorretiniana tem demonstrado, ano após ano, melhores resultados e recuperação visual de olhos SPL. A cirurgia de reparo primário, seguida de encaminhamento ao cirurgião de retina e vítreo para avaliação de possível cirurgia de reconstrução interna do olho, é a melhor conduta. A vitrectomia pars plana pode salvar.3,4
A Organização Mundial da Saúde está trabalhando em um novo guia de tratamento para olhos com trauma ocular e SPL. A luta contra a cegueira tem obtido vitórias expressivas, mesmo em olhos que, no passado, não tinham possibilidades de enxergar. Todo olho vítima de trauma e SPL merece uma chance.
Referências bibliográficas:
- Mahmoud TH, Govindaraju VK. Primary repair of ruptured globe on no light perception eyes and the role of vitreoretinal surgery. Ophthalmol Retina. 2024, 8: 615-616.
- Soni NG, Bauza AM, Son JH, et al. Open globe ocular trauma: functional outcome of eyes with no light perception at initial presentation. Retina. 2013; 33:380e386.
- Sherif NA, Hoyek S, Wai K, et al. Recovery of vision in open globe injury patients with initial no light perception vision. Ophthalmol Retina. 2024; 8:617e623.
- Agrawal R, Wei HS, Teoh S. Predictive factors for outcome of severely traumatized eyes with no light perception. BMC Ophthalmol. 2012; 12:16.